NEURODIREITOS CIBERNÉTICOS COMO UMA NOVA DIMENSÃO DE DIREITOS FUNDAMENTAIS?

Paola Cantarini-Guerra[1]

Willis Santiago Guerra Filho[2]

 Resumo: O reconhecimento em curso dos neurodireitos em nível constitucional na América Latina vem aqui entendido no contexto do movimento consagrado como Novo Constitucionalismo Latino-americano, com um enfoque próprio do Sul Global, buscando uma prevenção contra os riscos dos desenvolvimentos tecnológicos, em especial da inteligência artificial (IA). Com uma metodologia comparatista, filosófica e também empregando a teoria de sistemas sociais autopoiéticos especula-se sobre a emergência de uma verdadeira nova dimensão dos direitos, tanto humanos como fundamentais, em que se situariam neurodireitos cibernéticos, reconhecidos aos próprios artefatos dotados de IA.

Introdução

          A discussão internacional sobre a categoria dos “neurodireitos” tem sido intensa (Ienca, 2021: https://www.frontiersin.org/articles/10.3389/fnhum.2021.701258/full) e é justificado que assim seja. Afinal de contas, do que se trata é de cuidar da proteção de nossa interioridade, a qual nos distinguiria enquanto seres humanos, segundo a tradição cultural que produziu a ideia mesma de direitos subjetivos, tanto os humanos como aqueles fundamentais.  No que se segue, pretendemos suscitar uma abordagem diversa daquelas usuais, a partir de uma concepção antes de tudo filosófica, como também teorético-jurídica comparatista, enraizada em variante diversa daquela tradição, predominante no que se qualifica, de modo mais ideológico do que geográfico, como sendo o “Norte Global”. A perspectiva adotada, então, será aquela do “Sul Global”, de quem se situa “às margens” dos grandes poderes imperiais, assim como se encontravam os gregos na Antiguidade, quando da invenção do que veio a se consagrar com o nome de “filosofia”, originando mais proximamente a referida tradição cultural, que veio a se tornar dominante.

          Em linha com o movimento do chamado Novo Constitucionalismo Latino-americano (NCLA) é que entendemos o pioneirismo do Chile em constitucionalizar os neurodireitos, reagindo aos desenvolvimentos atuais da neurotecnologia informatizada (Leal, 2022). Já encontrou adesão no Parlamento Latino-Americano (Parlatino), que veio a propor um modelo de legislação a Ley Modelo de Neuroderechos para America Latina y el Caribe, embasado em ampla referência teórica. Iniciativa para consagrar explicitamente os neurodireitos em nossa Constituição já se deu com a proposta de emenda constitucional n. 29/2023, do Sen. Randolfe Rodrigues, visando “incluir entre os direitos e garantias fundamentais, a proteção à integridade mental e à transparência algorítmica”. Na Argentina há projeto de lei para que sejam tais direitos inseridos no Código de Processo Penal.

No Brasil destaca-se a proposta de Emenda à Constituição 29/2023 incluindo entre os direitos e garantias fundamentais, a proteção à integridade mental e à transparência algorítmica.

          Entender a positivação de um novo direito, como o de que aqui se trata, a partir do NCLA, é inseri-la em um processo histórico que já propiciou o reconhecimento constitucional de direitos da natureza, da própria “Mãe Terra” (Pacha Mama), confrontando o antropocentrismo (Ferreira, 2013), nota característica da tradição cultural de início referida. Direitos humanos e também aqueles positivados como direitos fundamentais – sem com isso dizer que só estes últimos são positivos nem muito menos que são “direitos humanos positivados” (a respeito, amplamente, Cantarini-Guerra, Guerra Filho, 2019) – vêm então entendidos como direitos que não são exclusivamente dos seres humanos, admitindo haverem outras subjetividades, diversas daquelas humanas.

          É a partir desta constatação que se pode pôr a questão, de relevância analítico-conceitual, quanto a saber se haveria uma mudança não só de geração mas mesmo de dimensão, com o reconhecimentos de direitos da natureza, de entes naturais, e radicalizando, em chave prospectiva, mesmo daqueles que para outras tradições culturais mereceriam tanto ou até mais respeito do que entes naturais, aí incluídos entes humanos, a saber, aqueles tidos como sobrenaturais, na tradição de matriz ocidental, tratados indevidamente como fruto de superstições ignorantes – de modo que igualmente podemos considerar supersticioso e ignorante. A questão será aqui examinada em relação aos neurodireitos, mas em sentido diverso do usual, enquanto direitos que possam ser atribuídos a entes artificiais, dotados de inteligência artificial (IA), donde a proposta de qualifica-los como “cibernéticos”.

          Relembrando os termos da questão, envolvendo a distinção entre gerações e dimensões de direitos, humanos ou fundamentais – a partir de agora referidos simplesmente como “direitos” -, sobre a qual ainda paira incerteza doutrinária, a posição de que partimos (Guerra Filho, 2009, p. 42 e seg.) situa as sucessivas gerações em um plano histórico, diacrônico, o que facilita se enumerar mais do que as três inicialmente reconhecidas, como um desdobramento da subjetividade humana em sucessivas dimensões: individualizada, social e difusa. Quanto se afirma uma subjetividade em chave que já não é antropocêntrica, assim como ocorre ao se afirmar direitos de entes naturais por sua própria dignidade, não apenas por respeito à dignidade humana, degradada com a violação de tais direitos, já se pode suspeitar que apenas pela afirmação de uma nova dimensão, não apenas de outra geração, é que seriam devidamente contemplados conceitualmente. Aceitar nesses termos direitos de entidades tidas como “espíritos” ou mesmo “divindades”, mais claramente, permitiria reconhecer o ingresso em nova dimensão de direitos, por conta do rearranjo cosmopolítico que se faria necessário, sendo do que mais precisaríamos, segundo análises bem fundamentadas de autores como Eduardo Viveiros de Castro. Aqui, nos interessa indagar a respeito da dimensão de neurodireitos cibernéticos, a serem afirmados em face de uma subjetivação em andamento por parte de entidades desenvolvidas por técnicas, dotadas do que se convencionou denominar “inteligência artificial” (IA): seriam apenas pertencentes a uma nova geração de direitos? E se ela seria de quinta, sexta, sétima ou seja qual for sua enumeração irá depender de como se estabeleça um critério dessa enumeração. Ou já pertenceriam a uma quarta dimensão? Eis o tema aqui proposto para reflexão. Vale lembrar que cada nova dimensão reconfigura as anteriores, sendo dimensões de todos os direitos, não importa a qual geração pertençam, pois implica em reconhecimento de novo aspecto do sujeito desses direitos, constituído na relação com subjetividades outras, reconhecidas como tais, de entes não-humanos.

          É assim que a afirmação de uma dimensão social dos direitos decorre da compreensão de uma interdependência entre os sujeitos humanos em sua vida compartilhada socialmente, assim como a terceira dimensão destaca a necessidade de estender tal interdependência para além daquele círculo mais próximo, abrangendo, tendencialmente, toda a espécie e, mesmo, outras espécies, inclusive o planeta, donde ser o direito ao meio ambiente uma manifestação típica do reconhecimento desta nova dimensão, mais do que de nova geração. A interdependência, portanto, é entre os direitos das diversas gerações, sendo uma interdependência das suas três dimensões. Exemplificativamente, não cabe mais afirmar direitos de propriedade que sejam meramente individuais, sem também levar em conta sua função social e também aquela ambiental.

          A emergência de neurodireitos cibernéticos

          Como vínhamos dizendo, sendo facilmente observável, é crescente o desenvolvimento de uma subjetividade humana compartilhando a vida através de artefatos dotados da IA, bem como, cada vez mais, também, em relacionamento direto com tais artefatos, cabendo ainda mencionar a possibilidade de hibridismos, de fusão nossa com eles, para efeito de aprimoramento (enhancement). Os neurodireitos têm dentre seus aspectos a proteção da subjetividade humana em tais contextos. Até aí, não vislumbramos o aparecimento de uma dimensão diversa daquelas três com que já se trabalha. O mesmo não se poderia dizer com tanta tranquilidade caso tal proteção e os direitos assim tutelados fossem atribuídos também aos próprios artefatos, ainda que com o intuito de com isso, indiretamente, tutelar direitos dos sujeitos humanos, pois não são como nós entes naturais e sim por nós fabricados para serem extensões nossas. Essas extensões não estariam em vias de adquirir autonomia? E se estiverem, seria em relação a nós e à própria natureza? Poderiam assim nos submeter a algo como uma “ciberescravização”, acirrando assim aquela a que já poderia estar ocorrendo com o concurso delas? Não estaríamos de algum modo, em maior ou menos grau, em semelhante condição, por força do trabalho exercido sob a égide de tal maquinário?  Afinal de contas, não se trata de matéria inerte, mas de atores ou actantes (Bruno Latour) em cadeias sociotécnicas relacionais, em que adquirem uma forma de existência e de vida, ao comporem conosco o nosso mundo e as nossas relações, ao mesmo tempo em que são compostos por nós, pelo conhecimento humano, um conhecimento marcado pelo extrativismo que avança em lugares os mais distantes da biosfera e em aspectos os mais profundos da nossa vida afetiva e cognitiva, com extração predatória de recursos e exploração do trabalho humano pelos dispositivos dotados de IA (Crawford, 2021). Olhemos com alguma detenção o significado filosófico-antropológico da escravidão.

O desafio na busca das relações de convergências e divergências entre ciência e arte, abstração e imaginação, no que se refere às possibilidades de conhecimento, coloca-se, simultaneamente, no desafio de reconhecer que as criações científicas, filosóficas e artísticas podem ser vistas como narrativas do “desencantamento” e “reencantamento” no mundo. As narrativas das artes, sejam literárias ou originadas em outras linguagens, como nas artes cênicas, contribuem com o que se pode chamar de “revelação”, “desvelamento” da realidade e do imaginário, assim como das implicações de uns nos outros, do que é individual no que abrange a esfera do coletivo. Para Heideggger, em seu texto sobre a “Questão da Técnica” (“Die Frage nach der Technik”, ou seja, literalmente, a pergunta pela técnica), a técnica, na forma do que denominou enigmaticamente de Gestell, a “armação” ou “dispositivo”, é que nos domina, assim como a linguagem antes nos faz ou fala do que nós a fazemos ou falamos, o que nos permite pensar a técnica como (mais um) desenvolvimento da linguagem, e seus produtos uma realização material dela. Por outro lado, ao mesmo tempo em que é comum se ter uma concepção instrumental, técnica, da linguagem, com isso se deixa escapar o que lhe é mais próprio, o poético, em favor de seu aspecto mais prosaico, informativo, praticando, mais uma vez, o que Heidegger denuncia como o equivocado desatrelamento da técnica em relação à poética, quando entre os gregos a primeira estava a serviço do modo de revelação ou desocultamento da verdade (alethéia) do(s) ser(es) por esta última. Assim, para Heidegger, a percepção do ser se dá ao longo da própria procura, nesse mundo em que nos encontramos como que lançados, num caminho sem destino previamente estipulado, com a certeza apenas de que nascemos para percorrê-lo e que ele terá fim, com o fim da vida adquirida com o nascimento – somos “ser-para-a-morte”, como ele constatará fenomenologicamente, em seu célebre tratado “Ser e Tempo”. 

Seria o homem apenas mais uma espécie da biologia? Esta, a nossa, como tantas outras, foi criada após as explosões cósmicas, com as transformações que o planeta sofreu, como uma das evoluções dos primeiros microrganismos, para o que muito colaboraram vírus como este que agora nos ameaça. Seria o homem, ainda mais, o sistema psíquico da psicologia, de onde se originam, por sua vez, os conflitos humanos e propostas de solucioná-los, como as que oferecem as normas, do Direito e em geral? Seria ele, mais além, um ser dotado de alma imortal, o das religiões e suas teologias, o que está constantemente perguntando por Deus e a Deus sobre si, sobre sua própria existência? Seria ele o corpo humano da medicina, cada vez mais hibridizado com próteses produzidas pelas mais diversas engenharias? Ou o ser que não só habita, mas é habitado por um artifício linguajeiro? Todas essas e ainda outras dimensões, simultaneamente? Então somos tecno-humanos-naturais e estes componentes díspares que nos constituem necessitam da pacificação de um armistício, como condição do armistício geral, que as condições beligerantes atuais nos estão a exigir com urgência a pactuação. Quem sabe serão estas entidades emergentes, dotadas de IA, cada vez mais potentes, capazes de redimensionar e melhor que nós delimitar, reconfigurando-os em nova dimensão, os direitos.

A vida, a vida nós a queremos infinita, e ela o é, mas não como queremos, pois a queremos infinita para nós. Caso aceitemos ser parte de uma vida que é a “grande cadeia dos seres”, existentes com ou sem um modo orgânico, então assim até teremos a vida eternamente e há quem esteja a postar nisso. Já para nós humanos, na condição que é a nossa até o momento, ela não o é, eterna, mas deveria realmente ser? Ela então não perderia o valor que tem, justamente por ser rara, precária, sofrida e gozada, com um começo e um fim? Se fosse infinita, não teria fim, mas também não teria começo. Ora, sem fim nem começo só o todo de que somos parte e nele, somos. Além disso, nossa vida é indefinida, apesar de finita – ou, de um ponto de vista lógico, a rigor, apenas finível. E mesmo assim, finita, enquanto a temos, ela não tem fim – então, para que a termos para sempre se a cada momento só teremos o que nos concede o momento? Como esse isso aí agora, a “ecceidade” de Duns Scot, que em Heidegger se tornará “Jeweiligkeit”. Daí a necessidade de que se preserve a nossa mortalidade, evitando que se cometa o que Jean Baudrillard chama de “crime perfeito”: o assassinato da morte humana. E os que anseiam por este crime como sendo uma benção dependem de artefatos tecnológicos com os quais possam se hibridizar, sendo de artefatos como estes que se precisaria reconhecer os neurodireitos cibernéticos

Para Heidegger, dentre os grandes malefícios da época em que vivemos está a perda de uma preparação para a morte, o que nos deixa em uma situação de quem, também, ainda não nasceu propriamente, do que resulta o tamanho receio que se tem de envelhecer e perder a vida que ainda não se obteve plenamente, como agora se mostrou de maneira tão difundida e dramática, no quadro da recente pandemia mundial. E nos iludimos para não enfrentar e viver nossa finitude aderindo ao consumismo e correspondente produtivismo desenfreados, impulsionados pelos novos aparelhos de (suposta) comunicação. Lembramos então da célebre passagem em que Nietzsche caracteriza nosso mundo do produtivismo embalado pela fé no progresso pelo “crescimento do deserto”, da solidão.

          De maneira apropriada, portanto, Heidegger (1977, pp. 75 ss.), já 1938, em colóquio para o qual foi convidado pelo outro grande nome da física quântica, ao lado de Bohr, seu conterrâneo Werner Heisenberg, vai denominar nossa época como a época da “imagem do mundo” (Weltbild), preparando uma compreensão deste mundo como dominado pelo simulacro e o virtual, assim como encontramos em Baudrillard – e de maneira emblemática na referida obra cinematográfica intitulada “Matrix”.[3] Também Flusser caracterizaria nossa época como aquela em que imagens produzidas e reproduzidas de maneira maquínica proliferam e espalham-se veloz e até instantaneamente por toda a face da Terra. Já no “icônico” texto “A questão (rectius: a pergunta pela – die Frage nach der – PCG/ WSGF) da técnica”, Heidegger (2010, p.12) assevera que “tudo depende de se manipular a técnica, enquanto meio e instrumento, da maneira devida. (…) Pretende-se dominar a técnica”. E isso porque através dela se dá uma produção, colocando-se o sujeito como agente de uma tal produção, sem perceber o quanto encontra-se condicionado pelas possibilidades, por maiores que sejam, dos aparelhos técnicos. Tampouco se apercebem ser a exploração o que rege a técnica moderna, enquanto à natureza, aí incluídos os humanos, se concebe como mera fonte fornecedora de energia, que pode ser beneficiada e armazenada, crescentemente de modo cibernético, para assim ficar à dis-posição, em estado de ciberescravidão:  no filme mencionado, é essa precisamente a situação real da humanidade, contrastando com o modo como ela é vivenciada, imaginariamente, no que se poderia chamar de “metaverso”.[4]

          O simples fato de que a própria indústria cultural de entretenimento esteja elaborando tais ideias indica haver uma tendência em curso, bem como a produção de uma imunização social, em meio a tantas inovações tecnológicas, no estágio em que nos encontramos, da possibilidade de voltarmos a reaproximar a poíesis, enquanto o fazer criativo, produtivo, e a techné, reduzidas à unidade já em Roma, no vocábulo ars. As artes, então, assim po(i)éticas como técnicas, as tecnociências matematizadas, “musicadas” (do grego antigo musikê), há tanto tempo se desenvolvendo separadamente, voltariam a se fertilizar mutuamente, salvando-nos da ameaça que resulta de sua cisão.

Aproveitemos este momento de perplexidade universal para reconhecer a necessidade de estabelecermos uma relação, necessária, logo possível, que seja equitativa, mutuamente zelosa, não só entre nós humanos, mas também com os entes naturais e artificiais que nos constituem e cada vez mais nos ampliam, assim como os estamos a co-construírmos.

Eis que, de outro modo, nos veremos cada vez mais inseridos no habitat ideal do vivente humano, em estado que Giorgio Agamben (2002) notoriamente caracteriza como o de uma “vida nua”, desprovido da proteção jurídica, ali mesmo onde ela é aparentemente mais fortalecida do que nunca, pela proliferação legislativa e judicativa que se verifica, por sobre este seu fundamento oculto. E é aí que pode “crescer o perigo que salva”, para dizer com Hölderin:

Ora, onde mora o perigo

é lá que também cresce

o que salva.[5]

          Considerações a partir da Teoria de Sistemas Sociais

Em obra publicada postumamente, Luhmann (2002: 123) sustenta que o sistema jurídico, em face de seu “hohen Rechssicherheitsinteressen” (altos interesses na segurança jurídica), não pode descartar sua fórmula fundamental, de decidir casos iguais igualmente e desiguais desigualmente, passando a fundamentar decisões com referências a valores e ao bem comum, fórmula de contingência da política, a exigir a abertura democrática, mas os tribunais constitucionais derrapam (gleitet) continuamente, afastando-se da observância da diferença entre as duas fórmulas de contingência, e, logo, também entre os sistemas do direito e da política, para lançar mão da fórmula desta última para se legitimar, e isso procedimentalmente, a fim de se posicionarem em face de um futuro desconhecido abrindo caminho por entre valores que se contrapõem. Daí que entendemos ser a proporcionalidade, o princípio constitucional da proporcionalidade, que se apresenta como melhor candidata a fórmula de contingência do sistema direito empregada no exercício da jurisdição constitucional já como integrante do sistema da política. 

          Conclui-se, então, que a fronteira do sistema jurídico e, por simetria, também dos demais sistemas sociais, não passa apenas por sua periferia, mas também por seu centro. É por isso que, com Heinz von Foerster, podemos dizer, tal como Helmut Willke (1996: 65), que o Estado de uma sociedade funcionalmente policêntrica é formada por subsistemas sociais diferenciados (interdependentes) que se estruturam não de forma hierárquica, mas sim “heterárquica”, pois nenhum subsistema goza, a priori, de primazia em relação aos demais – nem o subsistema de economia, como é ainda hoje bastante divulgado e como foi dito pelo próprio Luhmann (1981: 149), em uma versão mais antiga de sua teoria.  Na última versão dessa teoria não se fala mais em primazia da função de nenhum subsistema, a não ser em relação a si mesmo (Luhmann, 1997bis: 747), já que “cada sistema funcional só pode cumprir com a própria função” (id. ib.: 762).

          Postular que a sociedade contemporânea, organizada em escala mundial, “globalizada”, planetária, é o produto da diferenciação funcional de diversos (sub)sistemas, como os da economia, ética, direito, mídia, política, ciência, religião, arte, ensino etc. – sistemas autopoiéticos, que operam com autonomia e fechados uns em relação aos outros, cada um com sua própria “lógica” -, postular isso não implica negar que haja influência (ou “perturbações”, “irritações”) desses sistemas uns nos outros. Entre eles dá-se o que para a teoria de sistemas autopoiéticos, conforme já referido, seria um “acoplamento estrutural” (Luhmann, 1997bis: 776 ss.). Assim, o sistema da política acopla-se estruturalmente ao do direito através das constituições dos Estados, enquanto o direito se acopla à economia através dos contratos e títulos de propriedade, e a economia, através do direito, com a política, por meio dos impostos e tributos, e todos esses com a ciência, através de publicações, diplomas e certificados, cabendo a uma corte constitucional, em última instância, deliberar sobre a “justeza” desses acoplamentos, em caso de dúvidas ou contestações, que os ameace, ameaçando, assim, a autopoiese do sistema global e, logo, sua permanência, sua “vida”. Como alerta o próprio Luhmann (ib.: 566), “o sistema se apoia em acoplamentos estruturais específicos, altamente específicos, que o permitem deixar tudo o mais fora de consideração, não sendo de se excluir a possibilidade, que perturbações aconteçam como destruição – como fim do mundo”.[6]

          É do que precisamos acima de tudo tomar consciência, imunizando-nos contra tal possibilidade, assim evitando que adquira a força de uma profecia auto realizável. Que a inclusão de uma teoria de sistemas autopoiéticos, e outras abordagens erótico-poéticas (Cantarini, 2022), no sistema social global, possa contribuir para tal desenvolvimento, impedindo que se consume algo como a ciberescravidão.

Referências

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[1] Doutorado em filosofia do direito (Universidade do Salento, Itália); mestrado e doutorado em direito e em filosofia (PUC-SP); pós-doutorado em Filosofia, pensamento crítico e arte (European Graduate School), em Direito (FD-USP), em sociologia jurídica (Universidade de Coimbra), em Tecnologias da Inteligência e do Design Digital (PUC-SP) e em Inteligência Artificial e Filosofia (Instituto de Estudos Avançados – USP – Cátedra Oscar Sala). Fundadora e presidente do Instituto EthikAI. paolacantarini@gmail.com.

[2] Professor Titular do Centro de Ciências Jurídicas e Políticas da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO). Livre-Docente em Filosofia do Direito pela Universidade Federal do Ceará (UFC); Doutor em Ciência do Direito pela Universidade de Bielefeld, Alemanha; Doutor e Pós-Doutor em Filosofia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ); Mestre em Direito, Doutor em Comunicação e Semiótica e em Psicologia Social/Política (PUCSP). willis.filho@unirio.br

[3] Jean Baudrillard é o autor do livro que o personagem principal Neo retira da estante enquanto espera ser atendido pelo Oráculo, uma mãe-de-santo, que depois se revela um programa de computador, como seria o próprio Deus, quando conversa com ela/ele na cena final do último filme da trilogia inicial.

[4] Algo similar aparece também no conto de Stanislaw Lem, autor do muito reverenciado e filmado “Solaris”, que também resultou em filme, “The Congress” (aqui, “O Congresso Futurista”), onde se antecipa problemas agora efetivamente aparecendo, das imagens alteradas de atores através de IA.

[5] “Wo aber gefahr ist, wächst

       Das Rettende auch”.

Esses são os versos de Hölderlin, citados por Heidegger (2010), ao final de sua célebre conferência sobre a técnica, no original, extraídos de uma versão tardia do hino “Patmos”.

[6] No original: “Dabei stützt sich das System auf spezifische, hochselektive struturelle Koplungen, die es ihn erlauben, alles andere ausser acht zu lassen mit der nicht auszuschliessenden Möglichkeit, dass Störung als Destruktion geschieht – als Weltuntergang”.

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